JUSTIÇA |
UMA QUESTÃO DE TOLERÂNCIA E SOLIDARIEDADE.
O Tribunal
de Justiça de São Paulo, através de voto proferido pelo desembargador José Luiz
Palma Bisson, em
Recurso de Agravo de Instrumento (nº 1001412-0/0 – 36ª
Câmara) ajuizado contra despacho de um Magistrado da cidade de Marília (SP),
que negou os benefícios da Justiça Gratuita a um menor, filho de um marceneiro
que morreu depois de ser atropelado por uma motocicleta. O menor ajuizou uma
ação de indenização contra o causador do acidente pedindo pensão de um salário
mínimo mais danos morais decorrentes do falecimento do pai.
Por não
ter condições financeiras para pagar custas do processo o menor pediu a
gratuidade prevista na Lei 1060/50. O Juiz, no entanto, negou-lhe o direito
dizendo não ter apresentado prova de pobreza e, também, por estar representado
no processo por “advogado particular”. A decisão proferida pelo Tribunal de
Justiça de São Paulo a partir do voto do Desembargador Palma Bisson é daquelas
que merecem ser comentadas, guardadas e relidas diariamente por todos os que
militam no Judiciário.
Segue a
íntegra do voto:
“É o relatório.
Que sorte
a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho
de coração duro – ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia.
Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do
distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim,
com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.
Aquela
para mim maior, aliás, pelo meu pai – por Deus ainda vivente e trabalhador –
legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em pau-brasil e que,
aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente
avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão
marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos
processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido . É uma plaina
que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu
pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro – que nem
existe mais – num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de
marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga,
ali tostado no paralelo da faina menina.
Desde
esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de
que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros
nesta Terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que
até o julgador singular deveria saber quem é.
O seu pai,
menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o
que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza
bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional
Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza
exuberante.
Claro como
a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um
salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue
ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra,
menino, é a fome não saciada dos pobres.
Por
conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar
contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou
inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao
revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as
causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada,
ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia dágua, de um prato de alvas
balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e
inesquecível prazer que me proporcionou.
Ademais,
onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos
pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos…
Enfim,
menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da
pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue
ouvir.
Fica este
seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de
definitiva, a antecipação da tutela recursal.
É como
marceneiro que voto.”
[Des. JOSÉ LUIZ PALMA BISSON — Relator
Sorteado]