segunda-feira, 19 de abril de 2010

José Rubens.

Será que é hora de morrer ?

Numa tarde de Junho de 2005 estava sentado aguardando a minha chamada para o entediante, mas necessário, check-up anual quando entrou pela sala um senhor franzino, trajando um agasalho azul e camiseta branca. Sentou-se ao meu lado e em poucos segundos já puxava assunto sobre o tempo tão inconstante na capital paulista, sobre o trânsito, a demora para a chamada, o esforço dos médicos em serem simpáticos, e coisas assim.
De repente, o pequenino homem, começou um pequeno discurso sobre se valeria mesmo a pena fazer o tal check-up. No limiar dos seus 88 anos, dizia ele, talvez fosse dinheiro jogado fora ou mesmo tomar o tempo dos atendentes com um velho que pode morrer a qualquer momento ou sacrificar enfermeiros e médicos com um caso sem solução. Discursava com naturalidade, alegria e serenidade que ninguém poderia achar aquilo absurdo. Dizia que já havia vivido o suficiente e feito muita gente feliz e que poderia até mesmo reconhecer e dizer o nome de todas as pessoas que conheceu durante sua longa vida.
Entre uma piada e outra, seus olhos já sem brilho e demonstrando o passar dos anos, rodavam a sala com uma velocidade incríivel, quase camaleônica e atentava-se a cada detalhe, desde o quadro de um bromélia que já desbotado e perdido num canto de sala de espera, que ele insistia em dizer que aquela pintura estava fora do contexto e que talvez uma paisagem tornava o impessoal ambiente mais acolhedor, até o corte do taier das atendentes que as deixavam desconfortáveis durante o dia de trabalho. Que percepção incrível !
Confesso que nunca iria me atentar a esses detalhes e muito menos saber que consequências aquilo poderia trazer. Enfim aquela conversa começou a me interessar. Dizia ele que andava de bicicleta todos os dias, pois assim poderia se atentar melhor a cada detalhe do seu trajeto diário. Lamentava que, por ordens médicas, havia sido privado deste passeio matinal, mas que guardava na mente cada capitel e seu formato das entradas dos prédios do centro de São Paulo. Falou-me da beleza arquitetônica da Avenida São Luiz e das pesadas portas de ferro fundido e bronze dos prédios da 7 de Abril. Pediu-me que dedicasse um tempo maior para contemplar o antigo prédio da Light olhando da Praça Ramos de Azevedo e correr os olhos pelo antigo Mappin até o Teatro Municipal, Convidou-me a gastar o tempo com o início da Brigadeiro Luiz Antonio e admirar o prédio que foi da antiga Ducal. Já havia ouvido esse nome de loja através do meu pai, mas mesmo assim consegui me localizar e selei o compromisso.
Disse-me, com sua voz já fraca, que mais do que isso que guardava na memória, tinha consigo a boa lembrança dos amigos e que os considerava todos os seus filhos, até mesmo aqueles que o espancaram no cativeiro. Cativeiro? Sim, o pequenino homem, que agora eu já percebia seu forte sotaque do leste europeu, havia sido sequestrado em 1998, contava ele. Apanhou muito e teve o nariz fraturado, mas mesmo assim, sem perder o humor, disse que mesmo sua liberdade ter custado 117 mil reais, à época, ainda não havia perdido o gosto de pedalar por aí.
Seu discurso já demonstrava um certo cansaço dos anos, mas era notório que gostava de narrar fatos, como se fosse um livro que saído da estande se mostrava alegre e brejeiro quando lido por alguém. Suavemente fomos conversando e nos conhecendo, rimos muito de casos do acaso até o momento fomos separados por uma atendente para a sequência dos exames do check-up, mas ainda nos vimos no final da jornada médica quando ele me perguntou meu nome e nos apresentamos formalmente. "Seo" Girz me abraçou e em bom Ídiche me disse: Vá na paz de D'us.
Três anos mais tarde, em 19 de Junho de 2008, vi no jornal que Girz Aronson faleceu no Sirio-Libanês aos 91 anos. O "Rei do Varejo", dono da G. Aronson, o "inimigo número 1 dos preços altos", Girz Aronson se foi. Um dos maiores negociadores do varejo e dono de uma rede varejista de eletrodoméstico que incomodou a muitos por muitos anos, inclusive o imortal Samuel Klein. Sobrevivente de sequestro, falências e revezes, era indestrutível. Um homem forte, apesar da aparência franzina que depois de perder um império varejista, ainda encontrou forças para continuar trabalhando com suas filhas em um pequena loja da Conselheiro Crispiniano, a GA Utilidades, seu habitat natural.
A história deste lituano judeu marcou a vida de São Paulo tanto economicamente como em sua história e no crescimento. Um homem aprazível e um eterno colecionador de amigos também deixou minha vida marcada, pois eu conheci o "Seo" Girz, aquele pequeno homem de olhos acinzentados, dono de um coração gigante e imbatível, um homem ímpar, que também é meu amigo.

Por: José Rubens.

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